Todos devem se lembrar que, há alguns anos, ocorreu um surto de lançamentos e adaptações de livros distópicos do tipo “o lugar”, alguns muito bons e outros nem tanto. Aqui no Brasil, também não foi diferente, e vários autores embarcaram nessa literatura política. Com exceção das fantasias, qualquer semelhança com o cenário atual não é mera coincidência. Silvio Gomes é um desses autores que se aventuraram nesse estilo, mas não apenas seguindo a moda, e sim com embasamento. O autor é teólogo e especialista em ciências políticas, duas áreas que parecem tão diferentes, mas que se conectam em vários aspectos.
Em “O Lugar”, o autor nos apresenta Lázaro, um jovem de vinte e poucos anos que vive em um país sem nome mencionado, onde prevalece a política da desconfiança. Essa política consiste em todos desconfiarem uns dos outros, sejam amigos, colegas de trabalho ou até mesmo familiares próximos. A ideia é totalmente absurda e, é claro, não funciona na prática. Assim como nas distopias com as quais estamos acostumados, o único beneficiado pela política implantada é o próprio governo, que se coloca acima de tudo.
Lázaro é professor de literatura e, devido à vasta bagagem de livros “o lugar” que leu, questiona a política de seu país, principalmente a existência das Rodas Sociais, um espaço onde as pessoas poderiam se expressar sem medo de represálias, mas que acabam se tornando locais de violência gratuita. Para exemplificar, uma pessoa é agredida até a morte, e outras coisas também podem ocorrer ali. Parece até que poucas pessoas aguentariam ver isso, mas Silvio prova que, ao contrário do que parece, as pessoas veem sim o que acontece ali sem reagir e, muitas vezes, agem com a mesma violência que os outros.
“Nenhum governo cria uma ditadura sem a cumplicidade de uma parte do povo. O que vivi em meu país foi o que o meu povo quis viver. Povo e governo são cúmplices, e suas ações são inevitáveis.”
Lázaro é um personagem do livro “o lugar” que eu definiria como sonhador dentro do ambiente em que foi criado. Ele deseja o melhor para as pessoas ao seu redor, quer o direito de ser livre, quer o direito de confiar em quem ama. Para nós, pode não parecer muito, inclusive temos a ideia de que já temos tudo isso (mas será que temos mesmo?). Mas o principal desejo dele é chegar a um lugar que imagina como uma sociedade vivendo em paz, onde todos confiam em quem amam. Esse lugar ele não sabe onde fica, mas acredita e deseja conhecê-lo, assim como supõe que vários de seus autores favoritos conheceram.
O livro “O Lugar” e bom?
O livro o lugar conta então a busca de Lázaro por esse lugar misterioso e tudo o que essa crença afeta em sua vida. São exploradas todas as mudanças que ele precisa fazer, todas as coisas nas quais precisa acreditar e desacreditar para alcançar a realização de seu sonho. A jornada não é fácil, mas eu garanto que o final vale a pena, principalmente pelos elementos que Silvio utilizou para construir essa história. Com base na formação do autor, é fácil entender suas escolhas para o desfecho de Lázaro.
Demorei um pouco mais do que o habitual para ler o lugar. Os capítulos são longos e não há “respiros” para que possamos digerir tudo o que nos foi apresentado. Há muitos diálogos filosóficos que aprecio bastante, mas senti falta de algumas descrições de ambientes e gestos dos personagens durante os diálogos, para equilibrar o peso de tudo o que está sendo dito e o tempo que levo para compreender.
Apesar de o autor usar pontos, vírgulas e travessões, ainda assim tive a sensação de estar lendo Saramago, devido à densidade de tudo. Claro que nada disso diminui a grandiosidade do livro “o lugar“, pois são poucos os autores que abordam esse assunto de forma séria, sem personagens heróicos e revolucionários.
