[Resenha] Berserk Deluxe Volume 8

Redação

Berserk é uma série sem restrições criada por Kentaro Miura que apresenta arte elaborada, uma história absorvente cheia de carnificina e sacrifício, e um protagonista, Guts, que é um dos personagens mais brutais e implacáveis de todo o mangá. E é uma série que tem sido uma força na indústria por pouco mais de 30 anos e uma que tem mantido o manto do meu mangá favorito desde o dia em que o li. Enquanto Berserk é mais uma fantasia sombria, suas páginas estão cheias de tanto horror que conseguiu um lugar no meu melhor mangá de terror de todos os tempos.

Em uma época em que as guerras eram comuns no Japão medieval e samurais davam suas vidas em nome de seus daimyos, surge uma figura curiosa: a do tomador de promissórias de vida. Mesmo com um código de ética fervoroso que pedia a honra e a ética na vida e no campo de batalha, alguns homens temiam por suas vidas em momentos de desespero. Uma prática se tornou comum: evitar ter sua cabeça decepada por uma promissória contendo valores estratosféricos. Haviam homens piedosos que apenas cobravam o que se sabia que aquele que estava para morrer poderia pagar, mas o mais comum eram aproveitadores que extorquiam aqueles que poupavam. Homens conhecidos como tomadores de promissórias eram responsáveis pela cobrança dessas dívidas que poderiam afetar reputações e até mesmo arruinar um clã já que a dívida passava para a família. Hanshiro, o protagonista de O Preço da Desonra, é um desses homens e nada irá impedi-lo de levar a cabo a sua tarefa.

Hiroshi Hirata é um monstro como artista e é uma pena que só estejamos conhecendo-o agora. Seu legado é monumental no Japão e ele é um dos maiores mangakás vivos. Sua obra se concentra mais no jidaigeki, ou seja, as histórias de samurais que se passam no passado e exploram as diversas vertentes da cultura oriental. Suas histórias possuem muito de maturidade e vão se embrenhar em filosofia, na ética e nos costumes comuns da época. Hirata é um profundo conhecedor do bushido e é um homem que o pratica na vida real, na forma como leva a vida e como entende o mundo que o cerca. Por isso as histórias parecem tão verdadeiras, tão repletas daquele senso de verossimilhança. Em uma coletânea de histórias curtas posso até achar que uma ou outra história não seja tão legal quanto outras, mas a arte e o traço imposto em cada um dos quadros é absoluto e demonstra de forma inegável o patrimônio que Hirata é para a arte japonesa.

A edição do Pipoca e Nanquim está bastante elegante e gosto da ideia da editora de criar padrões editoriais para os diversos autores que pertencem ao selo Drago, de publicação de mangás. Fornece uma identidade visual para eles e a editora tem se mostrado atenciosa a esses pequenos detalhes. Já estamos caminhando para o terceiro e quarto títulos que serão lançados do autor no Brasil e é possível construir um lugarzinho só para seus títulos por lá. O mangá em si acompanha uma contracapa com uma arte maravilhosa do Hirata e internamente temos outra ilustração na capa em si. É uma ótima maneira de aproveitar esses visuais de capa de formas distintas uma da outra. O projeto editorial está bem bacana com uma ótima encadernação que facilita o manuseio. Os mangás do Pipoca e Nanquim estão entre os melhores nesse sentido e eu acabei de sair de uma luta para ler uma edição antiga de uma versão deluxe de Berserk publicado pela Panini. Era um tormento manusear as páginas sem machucar a encadernação. Ao final, tem um posfácio do próprio Hirata explicando as raízes históricas da profissão do tomador de promissórias.

Temos que falar da arte da arte do Hirata porque é um estilo único de contar histórias. Ele se baseia no lápis e no pincel para montar suas cenas e o fato de ele ser um mestre na arte da caligrafia tradicional japonesa imprime uma forma própria de desenhar. É como um artista com sua aquarela diante de um quadro. Hirata pode tanto empreender pinceladas vigorosas que demonstram o poder de uma cena ou apresentar algo mais sutil e etéreo como a névoa. Ao mesmo tempo ele se preocupa com o enquadramento da cena, então teremos momentos em que ele vai até mesmo mudar a angulação do que está acontecendo de forma a oferecer um tom mais dramático. Hirata é também bastante detalhista, seja em cenas de ação onde os detalhes povoam todos os cantos de um quadro até os mais parados onde ele consegue encantar com uma bela paisagem de floresta como a que abre o capítulo 3 do mangá. Um curto momento bucólico onde o autor pode demonstrar toda a sua potencialidade ao representar um ambiente aberto.

Suas cenas de ação são incríveis. Sua capacidade de imprimir pinceladas poderosas dá poder às ações dos personagens. É como se pudéssemos realmente sentir o poder das espadas dos samurais. Elas pesam como golpes reais. O fato de os movimentos dos espadachins serem realmente oriundos do kendô fornecem veracidade ao que estamos acompanhando. Os movimentos são humanamente possíveis e isso torna todo o drama de Hanshiro ainda mais palpável. Entendemos por que o personagem é temido entre seus iguais ao acompanhar seus movimentos. O emprego das linhas cinéticas por Hirata é eficiente e ele não abusa desta ferramenta. E isso porque estamos falando de um autor que nem inventa demais na forma de enquadrar as páginas, optando por algo bastante convencional. Mas, ao ser perfeito nas fundações, Hirata entrega um material fora do comum para os leitores.

As histórias vão girar bastante em discussões sobre o bushido, o caminho do samurai. O ato de trocar sua vida por uma promissória é considerado uma violação ao bushido por si só. Isso porque em seu código, um guerreiro (bushi) deve lutar com honra e orgulho mesmo diante da morte iminente. Se acovardar diante de um destino encontrado por sua própria inépcia ou falta de habilidade é uma desonra a tudo o que compõe um samurai. Só que consigo relacionar a maneira como Hirata aborda o tema do cumprimento do bushido com o que Isaac Asimov faz ao brincar com a aplicação das Três Leis da Robótica. Cada capítulo encontra uma maneira de desviar ou burlar o bushido e cabe a Hanshiro encontrar uma saída ao problema apresentado. Em vários momentos da narrativa são discutidos detalhes filosóficos ou éticos em que personagens se digladiam em conflitos de ideias com visões diferentes sobre o ocorrido.

Em uma das histórias, logo no prólogo, temos um personagem que adquire uma nota promissória no campo de batalha, mas falsifica o próprio nome. Hanshiro (nessa história, que é um protótipo do que viria a ser a série, seu nome é Souemon Yao) não tem ideia de como é a aparência do devedor e precisa consultar o chefe do clã para descobrir o paradeiro daquele a quem procura. Pior, o protagonista não tem nem mesmo o nome que é falso. O chefe do clã desafia o protagonista porque ele sequer tem certeza se o devedor é realmente alguém do clã, já que ele só possui uma promissória e a palavra de Hanshiro. Como alguém empenhado em uma tarefa complicada, o protagonista só pode contar com a força de sua honra e de suas palavras. Só que é claro que o que começa como sendo uma malandragem de alguém que não deseja cumprir sua promessa vai lentamente se transformando em um problema real para o clã que se vê envolvido em uma série de situações vexatórias e desonrosas.

Já em outra história que possui um tom mais intimista procuramos refletir sobre o impacto que um segredo pode ter na vida de um samurai. Um homem que adquiriu uma promissória em um momento de fraqueza. Estava com o filho no campo de batalha e era a única pessoa capaz de criá-lo. Tendo ficado à mercê de seu inimigo, ele cedeu aos seus instintos embora tenha se tornado um guerreiro virtuoso após esse momento. Anos depois, Hanshiro vai cobrar a dívida e traz feridas de volta à família do guerreiro. Mesmo sendo um homem correto e honrado, seu passado o condena por uma ação que colocou em xeque o fato de ele seguir o bushido ao pé da letra. Algo que ele ensinou a seu filho que também se tornou um homem bom e correto, seguindo aquilo que seu pai o ensinou. Mas, e agora? Como reagirá uma comunidade e uma família que entendem que o samurai era um homem correto e ético e agora descobre que ele rompeu com uma tradição no passado? Será ele culpado mesmo tendo pensado apenas na segurança e na criação de seu filho?

As missões de Hanshiro nem sempre são simples. Na maior parte das vezes tem algum complicador ou até mistério que ele precisa resolver. Seja um nobre esperto que utiliza de seu poder para pisar nos mais fracos quando na verdade ele mesmo é um covarde. Ou um samurai devedor que se esconde por trás de uma organização criminosa, roubando e tirando de outras pessoas e não desejando de forma alguma ter ética. Seu bushido não vale nada e só desperta a ira de um homem honrado como Hanshiro. Ou nosso tomador de promessas que pode cometer um erro ou um deslize e tendo todo o seu trabalho comprometido por um detalhe que faltava. Não devo contar mais porque as histórias são muito boas e apesar de não ter curtido uma ou duas histórias, por achar que a solução parece ter sido muito conveniente, no geral gosto do encaminhamento dado pelo autor. Um outro porém fica em algum nível de previsibilidade que passamos a ter a partir da terceira história quando compreendemos melhor como funciona o modus operandi de montagem da narrativa por Hirata. Mas, é um belíssimo mangá e serve como apresentação a esse monstro dos mangás que é Hiroshi Hirata.

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