[Resenha] Um Legado de Espiões

Redação

Interessante quando a leitura de um livro modifica radicalmente nossa percepção de uma obra anterior, escrita 50 anos atrás. O clássico O Espião que Saiu do Frio havia me surpreendido por se mostrar totalmente diferente do que eu esperava, com pouca ação e muito jogo de inteligência. Curiosamente, apesar da consagração como grande romance de espionagem, a obra não me fisgou a ponto de entrar para uma galeria de preferidos, mesmo reconhecendo nele todos os traços que fizeram sua fama.

A leitura de Um Legado de Espiões, contudo, não só mudou meu entendimento e opinião geral sobre o clássico como alavancou minha curiosidade para as demais obras de John Le Carré que envolvem o universo de George Smiley e cia.

Peter Guillam, parceiro e discípulo de Smiley na Circus – como é chamado o Serviço Secreto Britânico em suas histórias, inspirado no MI6 – vive tranquilo, mas um tanto atormentado, numa fazenda na Bretanha após sua aposentadoria. Um dia, recebe uma carta que o convoca, com urgência, a prestar esclarecimentos à antiga agência.

Assim, ele vai ser obrigado a relembrar um episódio difícil de sua trajetória profissional: a operação Windfall, que, na década de 1960, acabou dando muito errado e matando um casal de agentes e amigos de Guillam – em uma passagem que é parte do enredo do clássico “O espião que saiu do frio”. Nos dias de hoje, os filhos do casal estão dispostos a descobrir exatamente o que aconteceu – e a arrancar muito dinheiro dos cofres britânicos no processo. (Resenha: Um Legado de Espiões – John Le Carré)

Um Legado de Espiões é um acerto de contas da era de ouro da espionagem que foi apresentada por John Le Carré ao longo de oito livros. Porém é impossível ler Um Legado de Espiões sem ter lido O Espião que Saiu do Frio. A conexão entre as duas tramas vai muito além das referências a uma operação do Serviço Secreto Britânico. O autor aqui passa a limpo todo o período em que esses personagens dedicaram suas vidas a uma causa. E os confronta, à luz do mundo de hoje, com suas atitudes e motivações, e até mesmo questiona as reais intenções de cada ato.

As novas gerações que se dedicam a devassar os arquivos do serviço de espionagem não possuem memória dos tempos de Guerra Fria. É uma juventude pronta para examinar casos e os julgar sob a ótica do século XXI, sem se importar em entender ou buscar informações sobre o que foram, de fato, aqueles anos.

No fim, tudo se resume a pastas de papéis cheirando a mofo e pré-julgamentos. Neste contexto, Peter Guillam precisa remexer o baú das memórias para esclarecer a verdade por trás da operação Windfall, tema de O Espião que Saiu do Frio. Será seu acerto de contas com o presente, com o passado, com seu mentor Smiley e, de certa forma, com todas as operações e ações empreendidas pela Circus.

Octogenário, Le Carré escreve com vigor de estreante, como se estivéssemos diante do primeiro e não do último livro do tema. O xadrez de inteligência jogado entre espiões dos dois lados do Muro é esmiuçado através de relatórios e depoimentos. Pastas sobre a mesa, erros e acertos são colocados no mesmo lado da balança. É o legado de uma época que não cabe mais no entendimento atual.

Após percorrer todas as trilhas, abrir todas as feridas e, talvez, criar algumas novas, Peter reencontra George Smiley. E não somente o livro, mas todo o universo da espionagem, recebe de sua boca uma espécie de testamento. A motivação maior que moveu uma geração… “Se eu tinha uma missão… Se algum dia tive uma além do nosso negócio com o inimigo, foi pela Europa. Se eu fui impiedoso, fui impiedoso pela Europa. Se eu tive um ideal inatingível, foi o de tirar a Europa da sua escuridão para uma nova era de razão. E ainda tenho”. Este é o legado que cabe aos novos defender.

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